I
Bernardo deixa uma fatia de pão queimar na chapa. Um “caralho” e um “tinha que ser” se fazem ouvir entre as risadas. Guga pega meu prato e pergunta o que vou querer enquanto Melissa monta meu hambúrguer. Pão, carne, salada e bacon. Repetem a receita sem precisar de lembrete pelo resto da tarde.
II
Chove aquela garoa fina que só cai nos finais de domingo. O tamborilar das gotas no telhado parece uma canção de ninar. Marina dedilha Novos Baianos no violão. Faz zum-zum e mel. O sofá de três lugares abriga agora o dobro de pessoas. Braços e pernas se embolam numa bagunça familiar. Qualquer noção de espaço pessoal se perdeu lá na primeira infância.
III
Breno me oferece uísque, mas Eduardo o veta: “Não deu certo pra gente, cara, pra que levar a menina pelo mesmo caminho?”. Lara se joga no meu colo pedindo cafuné. Fecha os olhos e sorri enquanto me conta qualquer coisa. Artur e Frederico vão para um canto na tentativa de esconder o baseado. Ainda resistem a fumar na nossa frente.
IV
— Breno, três temporadas de “Malhação”
— A da Betina e do Bernardo, a da Vagabanda e a dos skatistas — responde sem hesitar. — Caio, três nomes que você daria para um gato.
— Macho ou fêmea?
— Macho.
A resposta demora um pouco.
— Tofu… Zap… Perônio. — A pergunta demora um pouco mais: — Mel, três estádios de futebol.
— Vila, Pacaembu e Centenario. Lara, três filmes subestimados da Disney.
— Ai, calma, deixa eu pensar… “O Cão e a Raposa”, “A Espada Era a Lei” e “Robin Hood”. — Olha ao redor. — Nina, os três biomas brasileiros mais legais.
— Pantanal, Mata Atlântica e Cerrado. Hmmm, deixa eu ver… Guga, três instrumentos de sopro.
— Putz… Tá, sax e gaita, óbvio. E… flauta doce, vai. Bê, três partes do corpo para tatuar.
— Peito, canela e pescoço. Três flores, Fred.
— Hibisco, bougainville e… margarida. Edu, seus três drinques preferidos.
— Nossa, fácil: caipirinha, mojito e negroni. As três parlendas que cê mais curtia, Tutu.
— Hmmm, batatinha quando nasce, papagaio louro e… um, dois, feijão com arroz. — Então se vira para mim: — Pequena, três sinônimos de afeto.
Nem penso:
— Ternura, carinho e cuidado.
V
Quando os hambúrgueres acabam, chamam-se as pizzas. Caixas e mais caixas que serão jantar, café-da-manhã e almoço. A necessidade do alimento é uma imposição desta existência; a de estarmos juntos remonta ao Big Bang.
VI
Eduardo no violão e Guga no cajón. Marina faz caretas quando canta e Caio me cutuca para rirmos juntos. Se o mundo acabar. Todos sabem o seu nome e estão sorrindo. Meu coração e meu celular no console. É, vou ter que seguir em frente. Ei, cara, eu te amo, mas nem fodendo.
VII
Nossos corpos se desfazem em fumaça e líquido, mas não poderíamos ser mais sólidos. A manhã começa a se insinuar no horizonte, uma luz difusa na beirada do céu. A lua continua ali, porém, então tudo bem. Tudo bem. Por enquanto, ainda temos algumas músicas e fatias de pizza fria. Ato contínuo, dançamos.
Marcela de Gouveia ainda não aprendeu a escrever sem fazer referências musicais ou matemáticas. Detesta escanteio curto, tem ataques de riso em momentos inapropriados e nunca recusou um Toddynho.